
120 anos! Cento e vinte anos. Meio século e quase um quarto de outro, desde que o mais proeminente político do vigésimo centénio português nasceu num casinhoto em Santa Comba (Dão).
39 anos! Trinta e nove anos, desde que o processo começado por uma heróica cadeira de lona se produziu no facto típico morte, cadeira essa que tomou a seu cargo o fim de um regime que em nada contribuiu para o avanço de Portugal, sendo apenas uma continuação do (triste) reviralho da 1ª República.
Pergunta o camarada e amigo Gui von Cupper no fim do seu post se “em 35 anos de democracia alguém fez tanto pelos interesses de Portugal , postos inclusive acima dos pessoais, como Salazar?”
Tenho de responder com um taxativo “Não!”, acrescentando ainda a palavra: “felizmente”, sendo a resposta completa: “Não, felizmente que não!”
Para as mentes que agora se indagam, passo a explicar. A Democracia tem uma diferença, e apenas uma, do regime autocrático*: a liberdade de pensar de forma diferente, e fazer valer esses ideais sem ter medo de ser prejudicado por aquilo em que se acredita. Ora, a Democracia vive da discussão, do confronto, do debate, pelo que para que este sangue democrático aconteça não pode existir uma figura de proa que polarize e centre em si a acção política. Assim, está bom de ver que, um dos maiores inimigos da Democracia é a não existência de políticos de qualidade que dêem vida ao confronto político de onde surgirá a ideia que melhor servirá a nação portuguesa. Então, não é de difícil compreensão que a democracia seja um sistema totalmente hostil à existência de uma figura proeminente que deixe todas as outras na sua sombra.
Com Sal Azar, e na generalidade dos regimes de punho firme, nada disto houve. Houve sim, uma prepotência assente na ideia puramente fantasista de que um homem, um mero homem, se poderia comportar como um bondoso pai de uma nação, apenas deixando a sua filha seguir no trilho por ele escolhido.
Meramente a titulo de exemplo, as maiores edificações políticas humanas aconteceram todas em Democracia, apesar de nem sempre esta democracia ser explicita. As cidades-estado gregas prosperaram em redor do Mediterrâneo em Democracia. Roma nasceu e cresceu viçosa, enquanto era guiada por um Senado, que decidia democraticamente (curiosamente caiu aquando da concentração de poder no Imperador). A expansão portuguesa, na sua fase de glória e ímpeto, foi sempre decidida após conselho das cortes ao Rei (findou com a introdução da inquisição e do centralismo absoluto). O Império Britânico e a hegemonia Norte Americana são obvias demais para explicar, não?
Sei que é um cliché, mas não resisto a cá deixar a marca da ferradura de Churchill: "A democracia é a pior forma de governo, excepto todas as outras que têm sido tentadas de tempos em tempos."
Já agora que se fala dele, veja-se o que o Homem de dura natureza (dura como a terra em que nasceu) disse acerca dele ter batido a bota (mais propriamente botins, no caso em questão).
Coimbra, 27 de Julho de 1970 - Morreu Salazar. Mas tarde demais para ele e para nós, os que o combatíamos. Para ele, porque não morreu em glória, como sempre deve ter esperado; para nós, porque o não vimos morrer na nossa raiva, na nossa humilhação, na nossa revolta. Viveu a frio conscientemente, envolto numa redoma de severidade gelada, a meter medo, e acabou por morrer a frio inconscientemente, numa preservada agonia amolecida, a meter dó. A doença desceu-o de super-homem a homem, e, a duração dela, de homem a farrapo humano. E, quando há pouco chegou a notícia de que se finara de vez, nenhum estremecimento abalou o país. Nem o dos partidários, nem o dos adversários. Para uns, a sombra definitiva do cadáver sobrepôs-se apenas à bruxuleante luz do ídolo; para os outros, o sentimento de piedade cobriu cristãmente o ressentimento sectário. A obra de domesticação nacional estava realizada há muito por uma tenacidade dominadora que utilizava apenas as qualidades negativas do português, e não tinha outra sabedoria do tempo senão a lição da rotina sancionada nos códigos do passado. A fome de aventura, a inquietação da liberdade, o alento da esperança, o orgulho, o brio, a alegria e a coragem - tudo fora sistemática e impiedosamente apagado na lembrança da grei. Daí que se não vislumbrem quaisquer sinais de tristeza aterrada, e, menos ainda, de euforia redentora. A nação inteira passou, sem qualquer sobressalto, de respirar monotonamente com ditador, a respirar monotonamente sem ele.
Miguel Torga in Diário XI, edição do Autor, 2.ª edição revista, 1991 – 1.ª edição de 1973
* é obvio que a democracia não tem apenas uma diferença da ditadura, mas no post não vêem ao caso.